terça-feira, abril 18

O CANTE ALENTEJANO

173. Somos filhos de Casevel.mp3
Continuamos no Alentejo a ouvir o cante "Somos Filhos de Casevel" e deixo um texto que apesar de longo merece ser lido!

O CANTE ALENTEJANO
01-10-1985No Baixo Alentejo há um cante tradicional específico daquela região, que se chama cante alentejano. O que é o cante alentejano? Como se canta o cante alentejano? O que canta o cante alentejano? Donde veio o cante alentejano? É a estas perguntas que nós vamos tentar responder, embora sinteticamente. - Padre António Alfaiate Marvão
O que é o cante alentejano – O cante alentejano é uma polifonia simples, a duas vozes paralelas, à terceira superior. Como polifonia, vamos situá-la na época em que a polifonia tinha o primeiro lugar na mmúsica, toda ela vocal, a que se deu o nome de MILÉNIO VOCAL, uma polifonia sem instrumentos, que aparecem no período do Renascimento, no século XVI.

O cante alentejano é composto de modas, nas quais sobressaem, nalgumas delas, dois sistemas musicais inteiramente distintos: o sistema modal e o sistema tonal. O sistema modal, em uso durante toda a Idade Média, o sistema tonal, já fruto do Renascimento, no século XVI. O sistema modal grego, adaptado e modificado por S. Gregório, era composto dos modos Dórico, Erígio, Eóleo, Lídio e Mixolídio.

Os modos tinham sete notas, cujos semitons variavam na escala, ao contrário das nossas escalas, cujas melodias giram sempre em volta da tónica e da superdominante, segundo o tom é maior ou menor.

Os vestígios dos modos que mais frequentemente nos aparecem nalgumas modas alentejanas são do Eóleo, nas modas “Toda a bela noite eu estive” e “Ai ai”.
Do Mixolídio nas modas “Meu lírio roxo” e “Água leva o regador”.
Do Frígio no cântico ao Deus Menino de S. Matias.
No Lídio na moda “O Sarapateado”, de Santo Aleixo da Restauração e na moda “Ó abre-me a porta”.

Estes restos do sistema modal encontravam-se, em muitos casos, nos finais das modas ou dos estribilhos.

As principais características das modas alentejanas são as seguintes:

(a) Serem todas em tons maiores;
(b) Terem algumas o soluço eclesiástico, ou pausa para respirar, no meio da palavra;
(c) Terem algumas o acorde de tritono, que Arnol Schomberg baniu da harmonia ao inventar a dodecafonia seriada.


Como se canta o cante alentejano – Os cantadores, geralmente homens do campo, cantam em grupo, divididas as vozes em três naipes: o Ponto, o Alto e as Segundas vozes. A função do Ponto iniciar a moda, retomada depois pelo Alto, e em seguida pelas segundas vozes, constituindo assim o coro. A função específica do Alto é preencher as pausas com os “vaias”, no fim das frases musicais, excepto na última – assim uma espécie de Ponto na 1ª vez.
Podemos dividir o cante alentejano em três tipos de música: as modas lentas, as modas coreográficas e os cantes religiosos.


O que canta o cante alentejano – As modas alentejanas cantam-nos o Alentejo, com todas as suas belezas e a vida dos alentejanos. Há modas para todas as épocas do ano – a sementeira, com a moda da “Lavoura”, que yem o seguinte verso:

Já morreu o boi capote
Camarada do pombinho
Quem não for capaz que não bote
Regos ao pé do caminho

Da monda, com o “Manjerico folha recortada, da ceifeira, da apanha dos legumes, do casamento”, com a seguinte letra,

Marianita és baixinha
Ai, roja a saia pela lama
Ai, tenho to dito mil vezes
Ai. Levanta a saia Mariana

das sortes que diz assim,

Senhora do Livramento
Livrai o meu namorado
Para que ele seja livre
Ai, Meu Jesus
Ai, Meu Jesus
Dessa vida de soldado
Dessa vida de soldado

Da vida militar que diz assim,

Lá vai o combóio, lá vai
Lá vai ele a assobiar
Lá vai o meu lindo amor
Para a vida militar

O cante alentejano tem o sentido do amor, da saudade e da tristeza, embora associados também a outros motivos. Das 206 modas do Cancioneiro Alentejano, 114 falam do Amor. Por exemplo as modas “Lindo Amor”, “Ao romper da bela aurora” e “Ribeira vai cheia”, etc.
Das restantes 92, a maior parte canta a saudade. Por exemplo “O Meu Baleizão”, “As cobrinhas de água”, “Já morreu quem me lavava”, etc. 6 modas cantam a morte e 17 cantam a tristeza. Cantam a morte as modas “Lindo Amor”, “Solidão” e “Já morreu quem me lavava”. Cantam o sofrimento as modas “Anda cá senta-te aqui”, “Ó Maria Rita” e “Suspiros ais e tormentos”, etc.


Donde veio o cante alentejano – A hipótese mais significativa é a que nos aponta a vila de Serpa como terra onde se organizou o cante Alentejano, pelo seguinte. As escolas de polifonia clássica do século XV, em Évora foram frequentadas por alguns frades da Serra de Ossa. Alguns destes mesmos frades foram mandados para Serpa onde fundaram o convento dos paulistas e Escolas de Cante Popular. Deve ter sido dessas escolas que saiu o cante alentejano. O cante alentejano tem princípio, meio e fim, pelo que somos levados a crer que os autores das modas alentejanas tenham pessoas dotadas de conhecimentos musicais suficientes para as inventar. Estas escolas de canto popular, fundadas pelos frades paulistas da Serra de Ossa, teriam a sua origem aí pelos fins do século XV, na transição do Milénio Vocal para o Renascimento.
Assim definido, o cante alentejano representa a cultura popular tradicional do povo do Baixo Alentejo, de um extraordinário, com a sua identidade própria, as suas características específicas e a sua peculiar interpretação. Esta cultura mergulha as suas raízes no sistema musical medievo, numa perfeita simbiose de modas e de tons, fruto da evolução da música no período renascentista. Esta cultura traduz a perfeita imagem do povo alentejano, no seu quotidiano, durante séculos, e que se mantem viva, em toda a sua beleza sentimental e nostálgica, que embalou, a sua gente, a fez trabalhar, cantar, chorar, sofrer rezar e morrer, numa epopeia bem digna da pena de um novo ainda que rústico épico.




OS CANTARES DE PORTEL
Ao folhearmos a 1ª e a 2ª série dos Cantos Populares de Portel, recolhidos pelo Sr. Artur Duarte, músico da marinha e publicados pelo Sr. J. ª Pombinho Júnior, edições de 1948 e 1949, respectivamente, constatamos que alguns daqueles cantos tem estruturas musicais do tipo modal, como nalgumas modas alentejanas.

Por exemplo na 1ª série os cantos “Laranja da China”, “Aldeia da Laranja” e “Que levas na garrafinha”, são desse tipo de música. Os finais desses cantos, o primeiro em Fá Maior e os outros dois em Sol Maior, terminam respectivamente em Dó e em Ré, sem a preparação necessária para a modulação ao tom vizinho, mas utilizando as formas de modo Eóleo. Na 2ª série, o canto de passar da Ribeirinha, tem também uma terminação modal e não tonal. Trata-se, pois, nestes casos, de um grupo de modas que passaram para Portel, talvez através da Vidigueira, de Cuba ou de Viana do Alentejo nas romarias à Senhora de Aires, ou dos frades paulistas da Serra da Ossa, que abriram escolas de cante popular em Serpa, no Baixo Alentejo, onde provavelmente teve origem o cante alentejano.

Até à Serra de Ossa ainda se podem ouvir os lindos corais alentejanos. Depois, os adufos e os pandeiros acompanham a música Regional do Alto Alentejo, que se caracteriza especialmente nas “saias”, que se destinguem em velhas e novas, aiadas, puladas e com estribilho. As “saias” novas são ou eram cantadas em Elvas no S. Mateus, pelos grupos de Campo Maior, Borba, Vila Viçosa e Amandroal, em despique.

Ora Portel, influenciado pela música coreográfica do Alto Alentejo, que se caracteriza especialmente nas “saias”, como já referimos, principiou ultimamente a juntar às vozes dos cantadores alguns instrumentos, com ritmos novos, coisa que nunca se viu até ali nas músicas alentejanas. E o pior é que Beja foi-lhe no encalce e afinou pelo mesmo diapasão, juntando-lhe ao canto e aos instrumentos, vozes femininas, em interpretações por vezes bizarras, pouco de harmonia com o tradicional cante alentejano. Há quem goste e quem não goste, pertencendo a este último grupo aqueles que ainda sabem distinguir entre uma cobra e um lagarto.

É claro que não é com duas cantigas azougadas que se muda a face da terra, que continuará a girar sempre à volta do sol.

O contrário seria a destruição do nosso planeta e dos seus colegas vizinhos e não sabemos se de mais alguns.

Não é tarefa fácil destruir a alma de um povo, por mais tentativas que se façam para o conseguir. Ela permanece sempre através de tudo, especialmente nas suas tradições. Ali deixa o homem e a sociedade que ela formou, bem vincada, a sua personalidade, a sua razão de ser e de viver. O Alentejo será sempre reconhecível através das suas velhinhas, nostálgicas e encantadoras modas, de cantadores bem unidos nas vozes, nos corpos, nos sentimentos e na vida.

Padre António Alfaiate Marvão,
Congresso Sobre o Alentejo - Semeando Novos Rumos,
Évora, Outubro 1985, I Volume, Págs. 104 a 107
Edição da Associação de Munícipios do Distrito de Beja